Inovações Clínicas em Psicoterapia
On-line:
Caminhos para a adoção de práticas
baseadas em evidências
Fernanda
Barcellos Serralta1
Luan Paris
Feijó2
1Psicóloga, Doutora em Ciências
Médias: Psiquiatria (UFRGS). Coordenadora do Laboratório de Estudos em
Psicopatologia e Psicoterapia (LAEPSI), professora e pesquisadora do Programa
de Pós Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS),
RS.
2Psicólogo, Doutorando em Psicologia
(UNISINOS). Membro do Laboratório de Estudos em Psicopatologia e Psicoterapia
(LAEPSI) do PPG em Psicologia da UNISINOS. Professor e Coordenador do
Bacharelado em Psicologia da Factum Faculdade, RS.
Nem tudo que pode ser contado conta e nem tudo que conta
pode ser contado
[Not everything that can be counted
counts and not everything that counts can be counted] (Albert Eistein)
Desde
o início do século passado, quando uma das pacientes de Freud denominou um
método inovador de tratamento das afecções neuróticas como a “cura pela fala”,
até os dias de hoje, quando as psicoterapias psicodinâmicas,
cognitivo-comportamentais, sistêmicas, humanistas, ecléticas e tantas outras
foram desenvolvidas para promover e reabilitar a saúde psicológica de
indivíduos, casais, famílias e grupos, muita coisa mudou. Neste artigo
refletimos sobre a articulação entre dois vértices destas mudanças que impactam
a psicoterapia na atualidade - a revolução digital e a crescente valorização
das práticas psicológicas baseadas em evidências – e apresentamos uma breve
síntese da nossa caminhada como pesquisadores na temática da investigação dos
processos e da efetividade da psicoterapia on-line e direcionamentos futuros.
A
prática clínica está sendo progressivamente atravessada por desenvolvimentos
tecnológicos que ampliam o olhar humano e/ou a sua ação, e potencialmente
fornecem maior confiabilidade aos processos de intervenção e avaliação. Por
exemplo, já temos no país instrumentos de avaliação psicológica aplicados por
meio das tecnologias de informação e comunicação (TICs), plataformas digitais
para atendimento psicológico e/ou psicodiagnóstico/avaliação psicológica, uso
da realidade virtual para tratamentos de fobias, aplicativos para cuidado
autoguiado em saúde mental, entre outros recursos (Peuker & Serralta,
2020). Acredita-se que com tais desenvolvimentos, aliados à necessidade atual
de distanciamento físico em razão da pandemia da COVID-19, tenham contribuído
para o maior interesse dos psicólogos sobre como as TICs podem ser incorporadas
na sua prática profissional.
As
TICs podem ser associadas à psicoterapia de diversas formas, como recurso
auxiliar (por exemplo, uso de aplicativo para apoio à comunicação ou para
intervenção entre sessões) ou como veículo da relação e da comunicação, como
ocorre na Psicoterapia On-line e nas intervenções pela Internet. Em qualquer
destes cenários faz-se necessária a investigação e a produção de conhecimentos
para nortear a prática clínica com segurança e cuidado ético e técnico.
A
prática de psicoterapia on-line pelos psicólogos, no Brasil, foi regulamentada
pelo Conselho Federal de Psicologia, por meio da Resolução CFP n° 11/2018
(Conselho Federal de Psicologia, 2018). Anteriormente, a prestação de serviços
psicológicos à distância estava restrita a orientação psicológica de até 20
sessões e a psicoterapia em caráter experimental (Conselho Federal de
Psicologia, 2012). Mais recentemente, em razão da pandemia, a resolução de 2018
foi parcialmente suspensa, dando lugar à Resolução CFP nº 04/2020 (Conselho
Federal de Psicologia, 2020), que flexibiliza a atuação de forma remota, mas
reforça necessidade de cumprimento do Código de Ética e obrigatoriedade de
cadastro no e-Psi. Conhecer tais resoluções é fundamental para a prestação de
serviços psicológicos on-line. Recomendamos ainda a cartilha que elaboramos
para orientar psicoterapeutas nesta forma de atendimento (Feijó & Serralta,
2020).
Ainda
que a aplicação de intervenções psicológicas à distância tenha recebido impulso
recente, ela não é exatamente nova. Freud realizou sua primeira “autoanálise”
mediada por carta, ou seja, sua correspondência (entre 1887 e 1902) com um
amigo íntimo, o médico otorrinolaringologista William Fliess. Em 1909, o pai da psicanálise publicou a
“Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”, análise esta realizada por
procuração, por meio das informações e conversas com o pai do pequeno Hans. Não
obstante, a psicanálise e as psicoterapias em geral são práticas que se desenvolveram,
refinaram e consolidaram em interações presenciais, face-a-face. Com os
recentes desenvolvimentos surgem então, entre os clínicos e pesquisadores das
diversas orientações, novas questões: Quão efetiva são as psicoterapias
on-line? O que muda em termos dos seus processos? Como se estabelece e
desenvolve a colaboração terapêutica? Quais os alcances e as limitações destas
práticas?
Como
pesquisadores, buscamos responder algumas destas perguntas, por meio de
investigações científicas, e difundir seus resultados aos clínicos para
colaborar com o desenvolvimento, no âmbito da psicoterapia, da prática baseada
em evidências (PBE), e da difusão de evidências baseadas em práticas (EBP).
Mas, qual é mesmo a relevância da PBE e da EBP para os psicoterapeutas? A PBE é
uma abordagem que busca resolver os diversos problemas que podem surgir na
prática clínica por meio da melhor evidência disponível (ajustamento ao
problema e qualidade da evidência), considerando as características do paciente
(cultura e preferências) e a expertise do terapeuta (julgamento clínico). Nesta
abordagem, são fontes de evidência tanto estudos experimentais como
naturalísticos, incluindo de processos, entre outros (Serralta & Feijó,
2020). A EBP é um paradigma de investigação que dá suporte empírico às
tradições e práticas culturais locais, isto é, às inovações eu os clínicos
produzem no seu próprio fazer buscando soluções para os problemas reais que a
psicoterapia apresenta em seus diferentes contextos. Desse modo, entendemos que é necessário
não apenas investigar questões que apresentem relevância clínica, mas também a
própria clínica tal como ela é cotidianamente praticada no país, com as
particularidades da clientela e recursos locais.
Contribuindo
com tais premissas, o nosso grupo de pesquisa, há alguns anos estuda alguns dos
impactos das TICs na prática psicoterapêutica, com atenção especial à
psicoterapia on-line. Em estudo realizado em 2018 em conjunto com pesquisadores
argentinos, avaliamos (Feijó, Roussos, Benetti & Serralta, 2018) o impacto
das TICs nas psicoterapias presenciais (face-a-face) nos dois países.
Destacamos aqui alguns dos achados da amostra brasileira: Na época, 98.06% dos psicoterapeutas usavam
mensagem instantânea para se comunicar com os seus pacientes/clientes, mas
somente 8,7%, como intervenção clínica; a maioria dos psicoterapeutas (60,2%)
já tinha usado a internet durante sessões de psicoterapia para psicoeducação ou
como recurso para que seus pacientes compartilhassem informações pessoais, por
exemplo; e ainda, 29.43% tinha utilizado videoconferência para realizar sessões
de psicoterapia, como forma de garantir a continuidade da intervenção diante de
alguma impossibilidade de manter, ao menos temporariamente, o contato
face-a-face. Essa modalidade de psicoterapia pode ser denominada híbrida, pois
conjuga os dois contextos presencial e on-line.
O
projeto de Tese do segundo autor, em etapa final de desenvolvimento, orienta-se
para o exame do processo-resultado da psicoterapia psicodinâmica on-line com
pacientes com sintomas de ansiedade em nível moderado ou severo, e deverá em
breve gerar valiosas informações para os clínicos e pesquisadores interessados
nas especificidades das intervenções on-line que ao que tudo indica parecem
existir, bem como no seu potencial para produzir mudanças não somente
sintomáticas mas também a nível interpessoal e estrutural (intrapsíquico). Além
disso, trabalhamos também, em parceria com pesquisadores chilenos, na avaliação
da progressão da mudança genérica ao longo do processo de psicoterapia on-line.
Com isso queremos compreender a extensão das mudanças que as intervenções
alcançam, bem como como tais mudanças são produzidas e/ou facilitadas. Estes
são estudos de casos sistemáticos, em que utilizamos gravação das sessões, aplicamos
múltiplas medidas observacionais e de autorrelato que são repetidas ao longo do
tratamento, visando a obtenção de descrições aprofundadas das interações
paciente-terapeuta que são ao mesmo tempo passíveis de análises quantitativas
(Serralta, Nunes, & Eizirik, 2011).
Estudos qualitativos foram também por nós
realizados com pacientes e terapeutas para compreender a sua percepção sobre o
relacionamento e processo psicoterapêuticos on-line. Percebeu-se que pacientes
se sentem mais rapidamente vinculados aos seus terapeutas do que o inverso. Os
relatos dos pacientes com ansiedade vinculados à Tese já mencionada sugerem que
o ambiente on-line é percebido como seguro e que, inclusive, facilita a
vinculação e colaboração com o terapeuta. Por outro lado, num estudo que
realizamos com terapeutas com experiência em psicoterapia on-line (Machado,
Feijó, & Serralta, 2020), estes referiram a que ainda que o trabalho
colaborativo acabe acontecendo de modo análogo às psicoterapias presenciais, o
desenvolvimento da aliança, especialmente do vínculo, parece ser mais lento. É
possível, portanto, que pacientes e terapeutas tenham percepções diferentes
sobre o processo e o relacionamento psicoterapêutico on-line. Tais diferenças
merecem ser mais bem examinadas em estudos futuros. Os terapeutas enfatizam que
a psicoterapia on-line, em contraste com a face-a-face, apresenta dependência
da qualidade da internet, maior vulnerabilidade do setting e limitação de conteúdos não-verbais. Para lidar com essas
especificidades os terapeutas relatam algumas estratégias que julgam efetivas
para minimizar impactos negativos, tais como: maior atenção a comunicação
verbal e ampliação tanto da escuta como na expressão (por exemplo, gesticulando
mais); combinações específicas, no contrato
inicial, sobre manejo das interrupções, sobre os dispositivos que serão
utilizados e sobre a integridade do local onde serão realizadas as sessões;
maior atividade, focalização, e atenção às oscilações da aliança terapêutica,
buscando repará-las no decorrer do tratamento.
A
prática da psicoterapia on-line é ainda muito recente e incipiente no país. Os
estudos existentes são escassos e há muitas questões ainda a serem feitas e
respondidas não apenas sobre seus processos e resultados, mas também sobre o
papel da internet, das interações e da realidade virtual na nossa vida pessoal
e profissional. Por exemplo: As TICs contribuirão para ampliar a efetividade e
a eficiência das psicoterapias? Como a nossa identidade pessoal e profissional
é transformada com a crescente dependência da tecnologia em todos os âmbitos da
nossa vida? Quais as implicações sociais desses desenvolvimentos? Elas servirão
para diminuir ou para aumentar desigualdades, inclusive de acesso à saúde
mental? Não pretendemos, obviamente, responder a todas essas perguntas,
inclusive porque ultrapassam a psicologia como ciência e profissão e adentram
outros campos que precisam ser pensados coletivamente pela sociedade.
Acreditamos que a psicoterapia on-line não pode ser ingenuamente pensada como
mudança apenas de contexto. Precisamos construir novas práticas examinando por
meios científicos aquilo que já se faz e também as novas possibilidades de
fazer. Os psicoterapeutas precisam conhecer a literatura existente, mas também
formular e buscar responder a questões que surgem da observação cuidadosa da
própria prática. Esperamos que o futuro da psicoterapia on-line no país seja
solidamente alicerçado neste diálogo pesquisador-psicoterapeuta.
Referências
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Federal de Psicologia. (2012) Resolução No
11, de 21 de junho de 2012.. Recuperado de
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/Resoluxo_CFP_nx_011-12.pdf
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https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/05/RESOLUÇÃO-No-11-DE-11-DE-MAIO-DE-2018.pdf
Conselho
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Recuperado de https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-4-2020-dispoe-sobre-regulamentacao-de-servicos-psicologicos-prestados-por-meio-de-tecnologia-da-informacao-e-da-comunicacao-durante-a-pandemia-do-covid-19?origin=instituicao&q=04/2020
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F. B. S., Nunes, M. L. T. & Eizirik, C. L. (2011). Considerações
metodológicas sobre o estudo de caso na pesquisa em psicoterapia. Estudos de Psicologia (Campinas), 28(4),
501-510. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2011000400010